Enquanto seu exército avança às cegas, os sertanejos têm uma organização perfeita, dividindo-se em vanguardas que irritam os federais, provocando pequenas escaramuças; mantém grupos na retaguarda, para guardar munição; outros para transportá-la e dividi-la nos combates; possuem até uma rede de espiões que conseguem infiltrar-se entre os oficiais do Exército, e uma capacidade quase instintiva de ajuntarem-se todos, quando sentem o inimigo fraco, para atacá-lo duramente.
São as “gentes brutais” de que falam os intelectuais da época. Negros e mestiços como João Grande, Macambira, Manuel Quadrado, Taramela, Nicolau Mangaba, Vicentão, entre outros - os “jagunços” que sabem vencer coronéis e generais.
Moreira César e os seus oficiais não percebem que essa gente vence porque defende sua terra, tem uma causa, e como está na sua “pátria” - o sertão, que vai virar mar e será o céu - combate com as táticas que nascem das próprias circunstâncias.
O coronel tem mais de mil homens e 16 milhões de tiros. Mas tem também freqüentes ataques de epilepsia e perde a razão vez por outra. Leva a fama de ter fuzilado rebeldes em Santa Catarina e ser o mandante de um assassinato de um jornalista. É de um homem “duro” assim que o governo precisa. E há toda uma fabulação por trás de Canudos, na luta pelo poder, com os florianistas tentando criar um herói.
Orgulhoso, não quis ouvir as informações de derrotado Febrônio de Brito e, ao partir para Canudos, telegrafou ao ministro da guerra: “Só temo que Antônio Conselheiro não nos espere”. Em 11 de fevereiro de 1897 estava marchando para lá. Sofreu dois ataques epilépticos e recusou os conselhos médicos para repousar e não seguir.
Depois de várias estripulias, de perseguir suspeitos pelo caminho e sofrer alguns percalços da desorganização crônica do Exército brasileiro, sente-se pronto para liquidar Canudos.
Enquanto isso os sertanejos “desaparecem”. A tática de Conselheiro, agora, é deixar as tropas aproximarem-se o máximo de Canudos e atacá-las de surpresa, apoderando-se de suas armas. A batalha se deu, como previram, no local escolhido por eles. Cavaram trincheiras e esperaram. Estavam protegidos por pedras, espinheiros e pelo sol inclemente.
A preparação da batalha demonstra a superioridade dos sertanejos sobre os oficiais brasileiros. Sem saber, Moreira César estava derrotado desde que aceitara o terreno da luta, onde os sertanejos criaram uma tática que ele não conhecia ou não conseguia entender. A vitória de Canudos foi completa: três colunas foram desbaratadas e seus comandantes, dois capitães e um coronel, mortos em combate.
O núcleo da expedição, comandado diretamente por Moreira César foi em Pitombas, ficou em posição desfavorável; não podia recuar em ordem e foi obrigado a avançar para a morte. O “batismo de fogo” de Moreira César foi em Pitombas, sendo ferido levemente no ombro. Ali os canhões de nada valeram. De repente, porém os sertanejos desapareceram. No silêncio que se seguiu à “fuga” encontraram uma espingarda de chumbo, entregue ao comandante. Ele entusiasmou-se e disse:
- Essa gente está desarmada.
Marchou para Angicos, onde chegou à 2 de março. Pouco depois estava em Umburanas, praticamente às portas de Canudos. Dirigiu-se à tropa, otimista:
- Vamos almoçar em Canudos!
Tomou posição nos morros que circundavam Canudos, alinhou os canhões e mandou bombardear o reduto de Conselheiro, de onde só vinham o eco rouco das bombas caindo e o repicar dos sinos. Ordenou que se tomasse a vila sem mais um tiro, “à baioneta”. Acreditava que os sertanejos estavam apavorados, afinal eram “mulatos, negros fanáticos”. A infantaria avançou de baioneta calada, seguida da cavalaria. Todo o exército de Moreira César cairia como uma onda destruidora sobre os habitantes de Canudos.
Quando boa parte dos soldados já entrava na cidade, de dentro das frágeis casas de barro, de buracos cavados no chão e das trincheiras nas pedras, começou a reação dos sertanejos. Do alto do morro Moreira César observava a luta. Percebeu que não seria tão fácil. Decidiu-se a comandar de perto. Montou seu cavalo e mal aproximando-se do local foi atingido por um tiro no ventre. Voltou, ainda montado, para ser socorrido.
Depois de cinco horas de luta as tropas começaram a recuar. No leito do hospital de campanha, Moreira César gritava para que continuassem atacando. Mas os oficiais decidiram que não havia condições e resolveram pela retirada.
Na madrugada de 3 de março de 1897 o coronel estava morto. A retirada foi uma debandada.os sertanejos decepavam os fugitivos a foiçadas. Morreram muitos oficiais, entre eles o coronel Tamarindo. Sentindo-se perdidos, os soldados corriam, desvestindo as fardas para não serem identificados e mortos.
Os sertanejos capturaram as armas, inclusive quatro canhões. Os estrategistas de Canudos, “fanáticos e jagunços”, impuseram ao Exército nacional uma das mais humilhantes derrotas.
A fuga foi desastrosa. Não se enterraram os mortos, deixaram os feridos. O cadáver de Moreira César foi abandonado. Não se podia explicar a derrota: seria aceitar que os sertanejos tinham uma capacidade superior de luta. Mais que nunca, então, criou-se o mito de uma campanha heróica, contra os traidores e fanáticos ajudados por monarquistas “de fora”.
Tinham que se inventar heróis.
Um deles já estava morto. Morto em batalha, na visão militarista, é herói. E para emoldurar ainda mais a “decisão e fidelidade” dos subalternos, criou-se a figura do cabo Roque. Esse cabo, diziam os “enviados especiais”, abraçara-se ao cadáver de Moreira César para protegê-lo da sanha dos fanáticos, e assim morrera, protegendo seu ídolo, varado de “balas jagunças”.
Portas e cronistas escreveram a lenda do cabo Roque, que mais tarde apareceu vivo, ignorando o heroísmo e desprezando o herói morto, Moreira César. Dele disse Euclides da Cunha, irônico, que foi “vítima da desdita de não ter morrido, trocando a imortalidade pela vida”. A história do Brasil está cheia de heróis assim...
Na verdade o “imortal cabo Roque” era padioleiro. Carregava com seus companheiro o corpo de Moreira César numa padiola quando os sertanejos atacaram. Ele próprio contou a um repórter que não se abraçara ao cadáver do coronel, mas que fugira com seus companheiros.
Centenas de cadáveres forma abandonados. Os sertanejos não os tocavam, retirando-lhes apenas as armas. Ficavam esses mortos insepultos como aviso às próximas expedições. A quarta e última, aliás, foi assustada pelo cadáver do coronel Tamarindo, mumificado pelo ar seco do sertão. Com dragonas e galões dourados intactos, foi encontrado balançando sobre uma árvore.
A derrota e principalmente a morte a morte de Moreira César abriu uma série crise política republicana. Os florianistas acusavam os liberais de conspirar com os monarquistas para enfraquecer a República. No fundo da questão a “linha dura” do Exército articulava uma ditadura militar e Canudos era um ótimo e talvez único pretexto. Aconteceram manifestações contra jornais e políticos monarquistas. O coronel Gentil de Castro, diretor de um jornal monarquista, foi assassinado. Escapou da morte o visconde de Ouro Preto e até Rui Barbosa teve que se esconder-se para não ser morto.
Para acalmar a opinião pública, envenenada por falsas opiniões sobre Canudos, era urgente esmagar Antônio Conselheiro. O governo não podia correr o risco de dizer que Canudos era apenas um “antro de fanáticos” sem conotações monarquistas restauradoras, para não irritar ainda mais a opinião pública. Portanto, a única saída era acabar com o pretexto dos militares florianistas e garantir o poder.
Com esse esse espírito organizou uma quarta expedição, que teria duas fases, com o maior cuidade e eficiência. A primeira expedição fora comandada por um tenente à frente de cem homens. A segunda, por um major com seiscentos homens. A terceira, a de Moreira César, por dois coronéis - ele e Tamarind, ambos mortos em combate - com 1200 soldados. A quarta expedição que se formava seria comandada por quatro generais, com vinte mil homens, dos quais metade entraria em combate. E o próprio ministro da guerra foi ao local acompanhar a luta.
O ministro convidou o general Artur Oscar de Andrade Guimarães para chefiar a “expedição final”. Em 21 de março de 1897 ele já estava em Queimadas. Em pouco tempo vinte batalhões estavam prontos, com soldados de Pernambuco, Rio Grande do Norte, São Paulo, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Rio Grande do Sul, Piauí e da capital do país. Esses soldados, em duas colunas, marchariam para Canudos, cercariam a comunidade e a destruiriam, contando com todos os recursos de que necessitassem.
Seis coronéis com seis brigadas com vários batalhões. Apesar do esforço do governo a desorganização era grande: faltavam animais, a munição perdia-se, os canhões estavam em péssimo estado. Mesmo assim formou-se o grande exército. Tinham aprendido algumas lições: os oficiais já não ostentavam as divisas, pois os sertanejos escolhiam os mais graduados, e foi até proibido fazer continência aos superiores, para não identificar seus postos.
Com esse espetacular exército, aos poucos os republicanos empurraram os sertanejos que os emboscavam para perto de Canudos, até os jogarem na cidadela, que seria arrasada. Contra os clavinotes e foices, trabucos e punhais, atiravam com metralhadoras e canhões. Ia se impondo uma vitória da superioridade da força bruta contra a astúcia dos sertanejos, agora reduzidos à defensiva.
O caráter da gente que iam matando aparece quando os republicanos atingem o local onde o grosso das forças de Moreira César foi derrotado. Ali estavam ainda os cadáveres fardados, mumificados pelo clima seco. Nos seus bolsos, porém, o dinheiro que traziam intocado - nessa guerra o saque e o roubo ficavam por conta dos “combatentes pela civilização”. A gente do povo tinha uma manifesta “honestidade primitiva”.
O que foi a última batalha, com seus trágicos, pode ser conhecido em Os Sertões, de Euclides da Cunha, em A guerra social de Canudos, de Edmundo Moniz, e especialmente em No calor da hora, de Walnice Nogueira Galvão, uma coletânea das mais importantes reportagens da época. É uma epopéia que não pode ser resumida; sua narrativa exige espaço e reflexão, introduzindo o narrador a se envolver, incapaz de conter-se diante do genocídio que se cometeu e da trágica capacidade de um povo acuado.
Canudos, depois de muita luta, foi derrotado. Não se rendeu: os sertanejos defenderam casa por casa, matando e morrendo com armas brancas. Recuando e atirando viram o fogo destruir as casas, queimar vivos e mortos. Os canhões não deixaram pedra sobre pedra: das igrejas restaram os escombros. Em 5 de outubro de 1897 tudo estava terminado.
Aqueles homens que desafiaram uma sociedade injusta, fundando uma utopia real, onde viviam livres e tendo tudo em comum, estavam mortos. Dos seus 35 mil habitantes, restaram poucas centenas de mulheres e crianças. Antônio Conselheiro morrera dias antes, doente. Desenterraram seu corpo, cortaram-lhe a cabeça e mandaram-na aos cientistas do governo, para que desvendassem o que haveria “dentro de um crânio fanático”. Tratava-se agora de difamar ao máximo o “velho bandido”. O crânio foi examinado pelo antropólogo Nina Rodrigues, que não encontrou nada de anormal.
Mas a campanha na imprensa já tinha feito o trabalho. Favila Nines, da Gazeta de Notícias, especializou-se em criar uma imagem de terror nos sertões, imposto pelos sertanejos de Canudos, chamados por ele de “inimigos da pátria”.:
“Canudos está definitivamente concluído. Arrasado completamente o arraial pelo incêndio, o resto das igrejas pela dinamite, nada mais resta senão um vasto cemitério com dez quilômetros quadrados de superfície, onde os cadáveres insepultos estão aos montes, uns meio cremados, outros em putrefação e outros mumificados pela ação do calor solar, que chega as vezes à 30 graus. Nas sepulturas, principalmente dos inimigos, foram enterrados aos três e quatro em uma cova só; é a vala comum dos inimigos da pátria”.
Os que incendeiam homens cercadoss são considerados “leais” e as vítimas, “pérfidos bandidos”. Dessa forma o correspondente de A Notícia, M. de Figueiredo, queixa-se dos métodos de luta do sertanejo, “que não trepida em lançar mãos dos recursos extremos para exterminar o inimigo leal que o persegue”. Esse Figueiredo, aliás, é de um extremismo que só encontra rival nas mentiras que disseminou sobre Canudos. Diz, por exemplo, que Antônio Conselheiro distribui farta ração entre os homens e deixa as mulheres e crianças em jejum; que matam os que discordam dele e tentam fugir. E mais: que as doenças dos canudenses seriam tratadas com as fezes secas do líder, que as distribuiria em saquinhos de papel. E vaticina: “Só exterminando o seu ídolo, exterminando depois, um a um, e, em seguida, deitando fogo ao antro do celerado Conselheiro”.
Outro jornal, O País, passa a imagem de que Canudos é um ardil dos monarquistas “estrangeiros”, que certamente viriam conquistar o Brasil. Uma de suas “cartas” fala em traição à pátria:
“A religião não passa de um meio de que o monarquismo é o fim, a que estão ligados os mais elevados representantes dessa morta instituição nos grandes centros civilizados e dinheirosos do país”.
Tudo o que parecia grotesco e grosseiro tinha grande influência em predispor o povo brasileiro ao genocídio que se cometia, publicado no “calor da hora”. A imprensa de maneira geral servia aos poderosos, preparava o terreno para o assalto final, a acabou justificando o que aconteceu depois - a concretização do vaticínio de M. Figueiredo. E mais: criado o mito do “fanatismo” daquelas “gentes inferiores”, era possível dispor dos seus restos bem como se entendesse.
Depois de queimar Canudos, oficiais, soldados, e jornalistas não tiveram dúvidas em apossar-se dos seus restos humanos. Crianças, especialmente as claras, foram seqüestradas. Umas, para serem vendidas como escravas. Outras destinadas à prostituição ou ainda ser “mascotes” de homens “generosos”. O tipo de guerra explica esse comportamento. Favila Nines, o jornalista da Gazeta de Notícia, conta candidamente:
“Cheguei a contar até 122 cadáveres nas ruas, mas calculo em mais de 200, porque em muitas casas havia montes de 8, 15 e 20, e tendo-se ateado fogo aos prédios, muitos foram incinerados. Os prisioneiros sobem a 160, na maior parte mulheres e crianças, visto ter o general ordenado não aprisionar homens que são de uma nudez revoltante e cínica”.
Matavam-se os homens. Mulheres e crianças distribuíam-se entre a soldadesca e até mesmo para o repórter. Ele conta que encontrou uma “jaguncinha com belos cabelos loiros e olhos azuis”, que levará para o Rio. É uma “lembrança” de Canudos. Eram “objetos” dados “gostosamente” a quem quisesse escravizar ou prostituir:
“O general Artur Oscar, que sabe aliar à bravura denodada de um soldado um belo coração de pai, dá gostosamente estas crianças a quem possa tratar, e por isso eu levarei a minha pobre Josefa. Quase todos os oficiais já têm uma desgracinha destas para proteger, o que faz com o maior carinho e dedicação. Até o general Artur tem uma, e o general Barbosa duas protegidas.
Na sua crônica ele narra vários encontros com oficiais e soldados levando sua “jagincinha”: são sempre loiras de olhos azuis. Alguns levam meninos. O jornalista Lélis Piedade, do Jornal de Notícias, conta sua disputa com a mãe de uma “jaguncinha”. A mãe não lhe queria dar a filha. Então, ele diz, mostrou à mulher que podia “toma-la à força com o consentimento do comandante da praça, major Manuel José de Freitas, um oficial correto em tudo”. A mulher entregou a “jaguncinha”.
São centenas de crianças que os soldados sequestam, os oficiais “adotam”, e os jornalistas “protegem”. Carregam também toda a sorte de objetos como lembranças da campanha de Canudos. Favila Nunes, muito sinceramente, conta por que deixou de socorrer um soldado:
“... que caiu ferido na virilha; deixei-o agonizando porque tinha de atender ao Cândido Mariano, que me forneceu alguns troços de jagunços para minha coleção de curiosidades canudenses”.
A mentalidade dos que combatiam em Canudos explica o desprezo que as elites brasileiras sentem pela gente do povo. Essas tais “curiosidades” servem pitorescamente para serem mostradas aos inimigos ou se usam, nada mais.
Que fim levaram as crianças?
A tal ponto venderam e prostituíram essas crianças que o governo foi obrigado a criar um comitê de socorro para acalmar a opinião pública estarrecida, especialmente na Bahia. Ne, a intensa campanha contra Antônio Conselheiro e seus “jagunços” convenceu o povo baiano de que se podia escravizar e prostituir crianças e mocinhas.
Esse Comitê Patriótico da Bahia, no relatório transcrito em No Calor da Hora, denuncia os fatos. Diz que conseguiu livrar da “verdadeira escravidão em que se achavam e por ventura, da prostituição no futuro”, em muitas mulheres e crianças de ambos os sexos. A “caridosa” proteção dos generais era falsa, pois: “... se achavam as desgraçadas prisioneiras de Canudos, muitas das quais mortas de inanição, sem que uma só alma caridosa lhes procurassem salvar a vida ...”
O hospital do Exército, mesmo com leitos vagos, não aceitou cuidar de algumas mulheres que estavam à morte e algumas morreram por falta de atendimento médico. As meninas “loiras e de olhos azuis”, como a que o jornalista Favila Nunes levou ou a que Lélis Piedade tomou da mãe, segundo o relatório, estavam às portas da prostituição.
“Pelas crianças, porém, notadamente por elas, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance. E pesa-nos dize-lo que grande parte dos menores reunidos pela comissão, dentre eles meninas pobres e mocinhas, se achavam em casa de quitandeiras e prostitutas. Foi, pois, para lamentar, a distribuição indevida das crianças, sendo muitas remetidas para vários pontos do Estado e para esta capital, como uma lembrança viva de Canudos ou como um presente.”
O relatório denuncia o comércio de órfãos e de “raparigas e meninas (que foram) defloradas” etc. uma das vítimas de 12 anos foi “desvirginada” pelo praça do 25º batalhão de infantaria, de nome José Maria”.
Poderíamos nos estender longamente citando essas “pequenas tragédias” que se seguiram à queda de Canudos. Não foram casos isolados: aconteceram às centenas. A impot6encia do Comitê para recuperar crianças escravizadas recusavam-se a entregá-las, mostrando recibos de oficiais e soldados. Entre vários casos cite-se o de um dos fornecedores das tropas do governo, Emílio Cortes, homem rico, que se recusou a devolver um menino porque tinha o recibo do próprio general. Donas de prostíbulos enviavam as meninas para o interior, escondendo-as do Comitê.
Assim terminou Canudos, mas não a ânsia de liberdade.
Seus mortos falam, na história do povo brasileiro. Talvez se possa lembrar Rui Barbosa, num dos seus textos mais ignorados sobre Canudos e Conselheiro:
“Os mortos pululam entre os vivos; inclinam-se daquelas galerias, apinham-se em torno desse anfiteatro, encostam-se às nossas cadeiras, não se vêem, mas se ouvem, se sentem, como se palpam. Vêm das catingas do norte, dos campos devastados, da guerra, das ruínas lavradas pelo fogo, dos destroços do petróleo e da dinamite; são desarmados, mulheres e crianças; mostram no colo o sulco da gravata sinistra; mutilados, esvicerados, carbonizados, estão dizendo: Falai por nós, voz da Bahia, voz da justiça, voz da verdade. Falai por nós, legisladores brasileiros, que falai por vossas almas, por vossos filhos. Temei a expiação, com que Deus pune o egoísmo insensível à causa dos mortos. As iniqüidades que bradam os céus recaem sobre a terra indiferente em chuva de iniqüidades. Separai a vossa sorte da sorte dos maus, ou a maldade será soberana, empestará o solo, e por mais de uma geração desencadeará sobre o povo o flagelo dos crimes que nos exterminam. Felizes os nossos companheiros, que morreram arrostando os leões; nós acabamos às garras das hienas. Somos as vítimas da boa-fé, a hecatombe da carniça.”
Para destruir Canudos o Exército brasileiro perdeu cinco mil soldados. Gastou-se uma enorme fortuna para armar e alimentar a tropa de repressão. A matança foi apresentada ao povo do Brasil como um ato de saneamento contra as forças do atraso, do fanatismo.
Hoje há uma represa em Canudos. É uma cidade submersa.
O que ficou debaixo das águas?
Autoria: Daniel Eduardo Tavares
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